sábado, 7 de janeiro de 2012

A Mulher nas Capas do Meia.


Em 2005, o grupo dono do Jornal O Dia, jornal popular do estado do Rio de  Janeiro, lançou o Jornal Meia-Hora, uma espécie de tabloide que teria em suas páginas a mesma qualidade de notícias, em menor espaço e com um custo muito menor para o leitor. Com slogans do tipo “Nunca foi tão fácil ler jornal” e “Se tempo é dinheiro meia hora é só R$ 0,70”, o jornal foi lançado com o intuito de atingir um público que segundo o site Wikipedia: “não tem recursos e/ou tempo disponível para ler jornais”. Uma pesquisa feita pelo próprio grupo O Dia teria chegado a essa conclusão, tendo então determinado como seu “segmento alvo” as classes C e D.

Depois de seis anos de publicações, o Meia-Hora é reconhecidamente um 
jornal de grande circulação, mas que recebe inúmeras críticas quanto à linguagem 
informal, principalmente pelo uso de gírias. 

Vale ressaltar a atual conjuntura cultural e social do Brasil, na qual os meios de comunicação são parte de grandes grupos midiáticos, o que se coloca como um desafio ainda maior no que tange à desconstrução desses modelos. 
Esses grandes grupos (que segundo algumas organizações da sociedade civil seriam compostos hegemonicamente por 11 famílias) controlam a maior parte do mercado de                                                         comunicação, fomentando e reproduzindo muitas vezes relações de opressão, preconceito e criminalização, visando a manutenção da ordem burguesa tal qual a conhecemos no século XXI. 


Nesse sentido, falar de gênero, assim como falar de qualquer outra construção/conceito histórico, é atentar para o momento e o local de onde se fala e para quem se fala. Ou seja, pensar e entender que: “a atribuição de espaços sociais diferenciados para homens e mulheres; é uma situação de discriminação feminina que lembra outras, presentes em diferentes momentos históricos, em diversas partes do mundo. Os processos que conduzem a essa situação não são idênticos e é importante prestar atenção às particularidades de cada caso. Mas há algo em comum, toda discriminação costuma ser justificada mediante a atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, que são usados para delimitar seu espaço de atuação.” (ADRIANA PISCITELLI



Pensar a forma como as mulheres são mostradas e/ou se mostram na mídia hoje, é pensar seu papel historicamente construído, é pensar também como essa mulher se vê enquanto sujeito e pauta na imprensa escrita e falada. Além de buscar estratégias de luta uma vez que as relações se reconfiguram em cada momento histórico. 
O que vemos hoje é o recrudescimento dessas relações nas quais as mulheres são reduzidas a coisas, a mercadorias e muitas vezes, de acordo com a referencia realizada, a seres não pensantes. 

Historicamente nós mulheres fomos oprimidas, vivemos a mercê das vontades do pai, do irmão, do marido e assim por diante, sempre “sob a tutela” de um homem. Além disso, o papel feminino na sociedade capitalista e em várias outras, esteve e ainda está ligado a uma imagem de sensibilidade, maternidade, submissão, entre outras dimensões, fato que deve ser destacado nesta discussão. 

Em tempos neoliberais, a ideologia hegemônica abarca dentre outras formas de ver o mundo, aquela que entende que mulher deve ser bonita, elegante, ter os cabelos lisos e se possível louros (considerando a cor de sua pele). Quando o "ser bonita" significa ser branca, magra, vestir-se bem - no sentido de ter acesso às marcas mais caras do mercado - e estar com o corpo na melhor forma, que por sua vez significa além de estar magra, ter seios e bumbum avantajados, se possível través da utilização de próteses de silicone (fato também reprovado por alguns atores deste debate). Quando não seguindo esse padrão, a mulher deve, por uma espécie de convenção subjetiva, seguir o modelo de mulher colocado nas grandes produções de novelas que tendem a ser muito parecidos. Como por exemplo, quando se tem uma protagonista negra na novela de maior audiência, nesses casos é possível que as mulheres negras que tem cabelos crespos “estejam na moda”. Ainda assim, a protagonista mantém uma lógica de comportamento submisso, da mulher branca de classe média e que vive em um mundo surreal, que é adaptado à realidade das muitas mulheres atingidas por esse meio de comunicação. Referente a essa temática Piscitelli (2009) faz uma leitura interessantíssima sobre as discussões das feministas do “Terceiro Mundo” quando coloca que: 

“... As mulheres negras, quando escravizadas não foram constituídas como mulheres do mesmo modo que as brancas. Elas foram constituídas simultaneamente e termos sexuais e raciais como fêmeas, próximas dos animais, sexualizadas e sem direitos, em uma instituição que as excluía do sistema de casamento...” 

Faz-se necessário, atentar para outra questão muito importante: cada um dos itens que compõe a “mulher ideal” ou o “modelo de mulher” estampado na capa do Jornal Meia-Hora do Rio de Janeiro – e na maior parte dos meios de comunicação brasileiros – é motor de grandes mercados (guardadas as devidas proporções, fundamentalmente considerado as camadas às quais o jornal atende, ou seja, as camadas mais mal remuneradas da sociedade). Sejam eles os mercados de grandes marcas, de produtos cosméticos, de clínicas de estética ou mesmo o mercado da grande mídia. Além disso, o conteúdo do jornal atua no sentido de reafirmar a submissão da mulher, comparando-a frequentemente a um objeto, ligando sempre sua imagem a submissão em relação ao homem especificamente ou 
ainda fomentando estereótipos. 



Nas capas do referido jornal, estão colocadas inúmeras situações envolvendo mulheres. Algumas chamadas, as menosprezam na relação amorosa, por exemplo, o casal teen Selena Gomez e Justin Bieber, foi fotografado em um passeio romântico, mas a cantora foi chamada de “peguete”, gíria usada para se referir a parceira como um passa tempo, onde não haveria uma relação de compromisso entre o homem e a mulher. Isso reflete a idéia de que o homem “por natureza” seria passível de ter vários relacionamentos amorosos ao mesmo tempo, enquanto a mulher que estaria nessa relação não representasse mais que um objeto para aquele parceiro que pode estar com ela e com outra sem maiores preocupações com a opinião alheia, um comportamento socialmente aceitável, uma vez que homens seriam “naturalmente” infiéis. 


A naturalização das relações entre homem e mulher pode ser analisada por diversos aspectos. Muitos autores renomados que fizeram e fazem análises a esse respeito, demonstram que essas relações, assim como as instituições que as mantém sob uma ideologia hegemônica, foram historicamente construídas em diversas sociedades e em muitas culturas diferentes. Nelas, homem e mulher tem papéis sociais baseados em uma cultura dada sob um modelo “legitimado pela natureza” principalmente no que tange à reprodução humana, na qual a mulher teria o papel principal de reprodutora da vida em âmbito privado, enquanto o homem participaria dessa relação atuando no âmbito público, consequentemente na sociedade capitalista mais especificamente, nas relações que se dão no mercado e na produção material. 


Para M.J. IZQUIERDO , em vez de estudarmos “machos e fêmeas” de forma habitual, há de se pensar as relações como “produto da interação entre natureza e cultura”. Uma vez que as condições biológicas estão postas, não há possibilidade de ignorá-las, assim, a autora faz uma análise importantíssima da mesma forma que outros nomes importantes dentro dessa temática. 


Sendo assim, é possível perceber nas inúmeras chamadas do jornal, que a imagem da mulher está sempre ligada em alguma medida a situações naturais ou ainda a animais como em certa chamada de notícia na qual a referência feita à modelo paraguaia Larissa Riquelme é a de potranca paraguaia. 



Colocando em questão a forma de representação dada a homens e mulheres ao “masculino e o feminino” nas capas do referido jornal, não é difícil perceber que mulheres são colocadas como seres inferiores e por isso submissos e menos inteligentes, ou resumidas a sua beleza física (atentando sempre para que beleza é essa, conforme citado anteriormente). Um exemplo disso foi a chamada para uma matéria que citava uma ex-participante de um reality show como leitora assídua do jornal em questão: a gente já sabia, além de linda, Pri é inteligente. O que a meu ver caracteriza o ideário de que as mulheres bonitas, em regra, não seriam inteligentes, ou não poderiam ser. 



Nessa discussão não se pode fechar os olhos para as questões de casse que com um olhar mais cuidadoso podem ser identificadas nas chamadas do jornal. Aquelas mulheres que aparecem nas noticias por qualquer outro motivo que não venha em função da fama, ou da grande mídia, vai haver em regra, referências pejorativas, e ainda mais agressivas, principalmente quando a noticia trata de algo ligado a crimes ou práticas ilícitas, como é possível perceber na figura a seguir:



Considerando além das relações de gênero e classe, cabe citar também as questões de raça, a notícia citada não tem fotografias e não mostra a raça/etnia da mulher em questão, mas considerando os números apresentados nos órgãos de segurança e certa empiria, que demonstram que as mulheres que são presas tentando ingressar no sistema penitenciário com drogas ilícitas, em sua maioria são negras, pobres e moradoras das periferias da cidade. 

Ainda nesse contexto Izquierdo ao falar sobre as bases sociais do sistema gênero/sexo fala sobre os modelos que se impõem sobre as pessoas em função de seu sexo. Para tal ela cita Marx, em sua Contribuição Crítica à economia Política: 

“Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade. Estas relações de produção correspondem em grau de determinado desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política a qual correspondem formas sociais determinadas, de consciência. Não é a consciência dos homens o que determina a realidade, ao contrário a realidade social é a que determina sua consciência”. 


Ainda que tenha buscado inserir nesta discussão autores que tratam da temática de gênero, o tempo de pesquisa, o pouco tempo de discussão podem não ter sido suficientes para uma boa análise, contudo, esta não se encerra aqui, uma vez que as capas deste importante meio de comunicação podem ser discutidas inúmeras vezes dentro da temática de gênero, de classe, de raça/etnia, enfim. 

Cabe dizer mais uma vez que grande parte das camadas populares da cidade tem acesso a esse jornal, que sua circulação se dá em grande escala e que estão colocadas em suas páginas referências que colocam a mulher como um ser resumido a uma beleza estética, ou ao delito cometido ou ainda como “monstro” em situações que envolvem crianças. Principalmente quando essas mulheres-mães não atendem às expectativas sociais, que as determinam como grandes responsáveis pelo cuidado com a família. Não foi possível recuperar as capas que tratam desses casos, porque aconteceram fora do período de acompanhamento das notícias. 

 Sendo assim as estratégias devem ser discutidas coletivamente, principalmente porque os próprios sujeitos envolvidos, estariam sempre em uma posição alienada e sem discussão a cerca dessas questões que estão sendo naturalizadas no nosso cotidiano, sobre isso cabe citar outra autora:

“[...] Assim, parece “natural” que caiba ao sexo feminino uma série de tarefas associadas ao papel que a mulher ocupa no processo reprodutivo. O cuidado com a prole é sempre destinado às mulheres, mas este se situa para além do papel propriamente reprodutivo. Entretanto, ainda assim recebe uma carga de atributo pré-social da condição feminina. As mulheres  estariam assim, ideologicamente, representadas como mais presas ou imersas no plano natural do que os homens [...]." (MARIA LUIZA HEILBORN)

 As capas do jornal Meia-Hora revelam mais do que estas poucas linhas tentaram expor. A forma como os meios de comunicação de massa existentes no Brasil, em sua maioria mantém a reprodução dessas relações marcadas pela submissão feminina e em alguns momentos como em muitas capas e matérias do Jornal em questão, pelo desrespeito à mulher como sujeito de direitos e protagonistas de lutas que a cada dia se colocam de forma impar, mas que ainda assim são ignoradas.